Início esta reflexão contando uma fábula que ouvi no Ensino Fundamental, inspirada nas Fábulas de Esopo, chamada “O leão e o ratinho”. Não aprendi exatamente como Esopo a escreveu. A fábula diz o seguinte: “Certo dia, um ratinho desatento saiu de sua toca e, imediatamente, caiu sob a pata de um leão, que poderia esmagá-lo. Foi grande o susto! Aterrorizado, o pequeno animal pediu clemência, implorando ao rei da selva que o soltasse e não lhe fizesse mal. O leão libertou o ratinho, que, agradecido, seguiu seu caminho e prometeu retribuir o gesto, embora o leão achasse pouco provável necessitar daquele insignificante animal. Alguns dias depois, o leão caiu numa armadilha. Debateu-se inutilmente para se libertar da rede até cansar-se. Quanto mais se debatia, mais ficava amarrado. Seus urros de desespero ecoaram na floresta. Ao ouvi-los, o ratinho aproximou-se para ajudá-lo: roeu rapidamente a rede e o libertou. A moral da estória parece lógica, simples e profunda: ‘amor com amor se paga’.
Parece uma conclusão cristã retribuir o amor com amor. Contudo, o Evangelho apresenta uma moral mais profunda ensinada por Jesus Cristo: os seus discípulos não devem se contentar apenas em retribuir amor com amor, mas devem responder ao ódio e à adversidade com amor. O ódio não deve ser retroalimentado. Não devemos amar somente as pessoas que nos amam, conforme ensina Jesus: “amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam” (vv 27-28). Para Jesus, não é mérito amar somente quem nos ama (cf. vv 32-34). A verdadeira virtude está em responder às hostilidades e ao desamor, com amor.
O convite dirigido por Jesus aos seus discípulos é para que sejam misericordiosos, como também o Pai é misericordioso. Ater-se somente à retribuição do amor aos amigos é restringir a sua ação a um pequeno grupo, impedir que ele se expanda. Somente o amor é capaz de quebrar a corrente do ódio e da violência. Quem segue a Jesus Cristo jamais pode retribuir um mal recebido com a mesma moeda, pois se igualará àquele que errou, do qual diverge. Isto não significa compactuar com as injustiças, mas buscar a justiça não como vingança, e sim como oportunidade para a restauração dos envolvidos: os que feriram e os que foram feridos. Aquele que perdoa pode não renunciar a seus direitos. Claro que soa muito difícil, mas “não há amor sem a experiência da pura graça” (Tolentino, A mística do instante, p. 95). Jesus testemunha o que nos pede ao perdoar aqueles que o crucificavam (cf. Lc 23,34). Conforme o papa Francisco, o juízo divino é “diferente do juízo dos homens e dos tribunais terrenos; deve ser entendido como uma relação de verdade com Deus-amor e consigo mesmo dentro do mistério insondável da misericórdia divina” (Spes non Confundit, n. 22).
A palavra misericórdia significa abrir o coração ao miserável. E quem são eles? São aqueles que foram privados dos meios necessários para viver bem: os pobres, os famintos, os que choram, conforme nos recorda o Evangelho das bem-aventuranças (cf. Lc 6,20-26). Misericórdia é a manifestação do amor divino que abraça, acolhe e perdoa. Para o papa Francisco, “a misericórdia é a carteira de identidade do nosso Deus” (O nome de Deus é misericórdia, p. 37).
Para o evangelista Lucas, a misericórdia é a essência divina. No coração do seu Evangelho se encontram as parábolas da misericórdia: da ovelha sumida e reencontrada; da moeda perdida e achada e do pai misericordioso (cf. Lc 15,1-32). Também em outros textos, Lucas manifesta a beleza da misericórdia divina, como na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37). Lucas nos convida a ser misericordiosos como o Pai (v. 36). Não significa jamais possuir a plenitude da misericórdia, mas ser sinais da misericórdia divina. Essa misericórdia se manifesta no amor gratuito, pagando o mal com o bem; no perdão oferecido a quem ofende e na generosidade, partilhando os bens. O amor exigido por Jesus não se atém a sentimentos, deve traduzir-se em gestos. É de mão única, não exige reciprocidade. Dirige-se a outra pessoa, independente dos seus valores, não porque ela seja merecedora, mas porque no coração do discípulo de Jesus não mora o ódio.
A filósofa espanhola Adela Cortina, no livro “Aporofobia, a aversão ao pobre”, constata a cultura e o discurso de ódio contra as pessoas diferentes, sobretudo por serem pobres (cf. Aporofobia, el rechazo al pobre, p. 29-33). Essa intolerância se traduz em perseguições, agressões e até assassinatos cruéis. Infelizmente, tais atitudes são alimentadas, em grande parte, por autoridades públicas mundiais, que vivem dos impostos pagos por todos os cidadãos, e deveriam respeitar a cada pessoa. O ódio não se dirige apenas aos que erram, mas também aos adversários, aos migrantes, rotulados como criminosos. Lamentavelmente, algumas vezes o discurso odioso é feito em nome de Deus, da religião, da pátria e da família.
O papa Francisco afirmou que a humanidade está ferida, possui profundas feridas e, por isto precisa tanto de misericórdia. Ele constata as doenças sociais, mas também as feridas causadas pela pobreza, pela exclusão social, pelas inúmeras escravidões do terceiro milênio, bem como pelo relativismo com a perda do sentido do pecado que destrói a vida (cf. O nome de Deus é misericórdia, p. 65). Vivemos as sequelas deixadas pela pandemia, quando as feridas aumentaram. A humanidade precisa de misericórdia. Não precisamos de armas para matar o inimigo, mas de amor para sarar as feridas provocadas pelo ódio. “Sem a misericórdia, sem o perdão de Deus, o mundo não existiria, não poderia existir (Idem, p. 56). Ainda, conforme discurso do papa Francisco aos bispos do Brasil, em julho de 2013, a nossa Igreja precisa ter entranhas maternas de misericórdia.
Na Bula deste Ano Jubilar, o papa Francisco nos convida a abrir o coração e a mente para perdoar. Para ele, “perdoar não muda o passado, não pode modificar o que já aconteceu; no entanto, o perdão pode permitir-nos mudar o futuro e viver de forma diferente, sem rancor, ódio e vingança. O futuro iluminado pelo perdão permite ler o passado com olhos diversos, mais serenos, mesmo que ainda banhados de lágrimas” (Spes non Confundit, n. 23).
+ Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano de Goiás