Neste domingo, iniciamos a leitura do Evangelho segundo Lucas, que nos guiará ao longo do ano litúrgico. O texto de hoje começa com o prólogo (1,1-4), e avança para o capítulo 4, apresentando o programa de vida de Jesus Cristo, na sinagoga de Nazaré, povoado onde fora criado (v. 16). Alguns dos capítulos intermediários, suprimidos nesta leitura, foram proclamados nas celebrações de Natal.
Lucas inicia seu Evangelho destacando a pesquisa realizada sobre os acontecimentos e a escuta de testemunhas qualificadas sobre os fatos ocorridos. Ele também dedica sua obra a um certo “excelentíssimo Teófilo” (v. 3). Mas quem seria Teófilo? Trata-se de um personagem desconhecido. A hipótese mais provável é que fosse um cristão influente, ou protetor de Lucas (cf. Fabris, Os Evangelhos II, p. 25). A palavra “Teófilo”, em grego, significa “amigo de Deus”. Assim, o Evangelho não se restringe a um único destinatário, mas se dirige a todas as pessoas que creem e acolhem a entrada de Deus na história da humanidade. Todos devemos ser amigos e amigas de Deus.
Os versículos do 4º capítulo lidos hoje se inserem no contexto de uma assembleia litúrgica. Jesus retorna à Galileia, terra das pessoas excluídas e marginalizadas, onde Ele ensinava nas suas sinagogas e era elogiado por todos. No sábado, dia sagrado e festivo para o povo judeu, Jesus vai à sinagoga de Nazaré, onde lê alguns trechos da Bíblia, o que era direito de todo judeu adulto. O texto escolhido por Jesus pertence ao livro do profeta Isaías (61,1-11). A novidade é que, além de fazer a leitura, Jesus comenta o texto, sem encontrar resistência do que presidia a sinagoga, talvez em vista da fama de mestre itinerante que Ele possuía. Contudo, sua interpretação era uma provocação aos nazarenos, que inicialmente o elogiam, mas ao final reagirão mal, recusando-o por sua origem humilde (cf. Lc 4,22-30).
A pregação de Jesus contém o seu programa de vida, conforme proposto pelo profeta Isaías. O texto começa afirmando que o Espírito do Senhor estava sobre Ele, ungindo-o para anunciar a Boa-Nova aos pobres (v. 18). Lucas destaca o protagonismo de Jesus, mas movido pela força do Espírito, que o conduz à Galileia (v. 14), terra marcada pela presença de pessoas empobrecidas. Nos quatro primeiros capítulos de Lucas é intensa e abrangente a presença do Espírito, que além de agir em Jesus, age em Maria, em Isabel, em João Batista, Zacarias, Simeão, Ana. “Há um verdadeiro pentecostes no início do Evangelho de Lucas, culminando no programa de Jesus, na sinagoga de Nazaré” (Bortolini, Roteiros Homiléticos, p. 585).
Ao contrário dos mestres da Lei, Jesus é direto e objetivo em sua interpretação do texto, declarando o cumprimento da profecia de Isaías: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (v. 21). O tempo da espera acabou. Em Jesus, a Boa-Nova se torna uma realidade para os pobres. Aqueles que antes eram estigmatizados pela religião da época, vistos como castigados por Deus em seus sofrimentos, agora recebem a Boa Notícia, e são reconhecidos como bem-aventurados. Os pobres, os presos, os cegos, os oprimidos não são mais considerados malditos, mas benditos de Deus. Para eles, chegou a libertação definitiva.
Por que o privilégio dos pobres? Não é porque a pobreza em si seja uma virtude moral que torne os pobres melhores do que os ricos. A opção pelos pobres implica lutar contra a pobreza e defender o direito de todos aos bens necessários para uma vida digna. A razão desse “privilégio” é a debilidade dos pobres e oprimidos, que atrai a misericórdia divina. Deus não permanece indiferente ao sofrimento dos seus filhos. Jesus é a face misericordiosa do Pai. A predileção divina pelos pobres não depende das suas virtudes morais. “O primeiro olhar de Jesus não se dirige ao pecado das pessoas, mas ao sofrimento que arruina suas vidas. A primeira coisa que toca seu coração não é o pecado, mas a dor, a opressão e a humilhação que homens e mulheres padecem” (Pagola, O Caminho Aberto por Jesus – Lucas-, p. 78).
O programa de Jesus beneficia diretamente os pobres que viviam à margem da sociedade, explorados pelos poderosos e sem forças para resistir. Jesus traz para eles a libertação, a esperança de uma nova vida. A eles é anunciado o ano da graça do Senhor. Esse ano da graça, ao ser proclamado em Israel, restituía a igual dignidade entre as pessoas (cf. Lv 25,8-17). Quem tinha contraído dívidas recebia o perdão; as pessoas que tinham suas terras penhoradas ou roubadas pelos gananciosos latifundiários as recuperavam; a liberdade era restituída às pessoas escravizadas. O programa de Jesus prevê a plena reintegração social das pessoas marginalizadas. O Evangelho anunciado por Ele não se reduz a palavras, mas se realiza na vida dos mais sofridos: os presos serão soltos, os cegos enxergarão, os oprimidos obterão a liberdade (v. 18).
Mas a Boa-Nova anunciada aos pobres era ameaça e má notícia para os seus exploradores. Na sua própria terra, Nazaré, ela não é bem acolhida. As pessoas exigem sinais concretos, milagres, para acreditar. Chegam ao ponto de tentar tirar a vida de Jesus, o que se prolongará ao longo da sua caminhada como consequência das suas opções e do confronto com aqueles que detinham o poder.
Também atualmente essa Boa Notícia para os pobres incomoda os grupos privilegiados. A opção da Igreja não pode ser diferente da opção de Jesus. Para o papa Francisco, “a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica” (Evangelii Gaudium, n. 198). As pessoas que defendem a dignidade dos pobres e lutam pelos seus direitos, são acusadas de fazerem discursos ideológicos e serem comunistas. Mas, para os verdadeiros cristãos, é uma bandeira evangélica, é fidelidade ao projeto de Jesus Cristo. Francisco nos convida a descobrir o rosto de Cristo nos pobres, a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles (cf. Evangelii Gaudium, n. 198).
Na Bula que institui o Ano Jubilar 2025, com o tema “Peregrinos de esperança”, o papa Francisco cita o Evangelho deste domingo, onde Jesus anuncia o “Ano da Graça do Senhor”. Francisco solicita que em todo o mundo, os crentes, especialmente os pastores, peçam condições dignas para quem está recluso, respeito aos direitos humanos e sobretudo abolição da pena de morte, medida que aniquila qualquer esperança de perdão e renovação (cf. n. 10). Pede ainda que as nações ricas reduzam ou perdoem totalmente as dívidas internacionais e criem nova política financeira que interrompa o ciclo de dívidas; e defende a criação de um fundo mundial para erradicação da fome e para a promoção de atividades que favoreçam o desenvolvimento sustentável nos países mais pobres. Para Francisco, essas ações poderão contribuir para desarmar os corações e ajudar a criar um mundo novo.
+ Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano de Goiás