InícioBispo DiocesanoA Voz do Pastor“Deus viu que tudo era muito bom” (cf. Gn,1-31)

“Deus viu que tudo era muito bom” (cf. Gn,1-31)

Sermão na procissão do Fogaréu – Quarta-Feira Santa (16/04/2025)
Igreja São Francisco de Paula, Goiás – GO
Queridos irmãos e irmãs,

Nesta noite em que as luzes do centro histórico da cidade se apagam, recordamos o caos que precedeu a criação divina, quando as trevas imperavam (cf. Gn 1,2). Uma das narrativas bíblicas em sua linguagem poética e teológica descreve em seis dias a origem do universo como uma verdadeira “cosmogonia” – o modo como diversas culturas e tradições compreenderam a origem de todas as coisas (cf. Gn 1,1, nota a, Bíblia de Jerusalém). A primeira criatura de Deus, pondo ordem ao “caos”, foi a Luz. Deus disse: “Haja a luz! E a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa” (Gn 1,3-4).

No sexto dia, ao concluir sua obra, Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26) e viu que tudo era muito bom (cf. Gn 1,31), texto que inspira o lema da CF 2025. Colocou o homem em um jardim e confiou-lhe a sagrada missão de cultivar e guardar aquele paraíso (cf. Gn 2,15). “Cultivar” é trabalhar a terra com respeito; “Guardar” é proteger, cuidar e preservar, mantendo a harmonia da criação (cf. Laudato Si’, n. 67).
Como afirma o cardeal Tolentino, a criação é a grande catedral de Deus – um santuário natural onde Deus está presente. Por trás de tudo o que existe, ecoa o faça-se divino, o sim eterno de Deus. Diante dessa maravilha, só nos cabe contemplar a criação de joelhos (cf. Pai nosso que estais na terra, p. 80). Cada criatura foi desejada e amada por Deus na sua singularidade e, à sua maneira, reflete uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus (cf. LS n. 69). Pois Deus vê a bondade das coisas em si mesmas, não apenas por sua utilidade.

O Salmo 24,1 nos recorda que do Senhor é a Terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele habitam. Mostra que a criação não nos pertence, mas foi confiada a nós como dom a ser cuidado com responsabilidade. A terra já existia antes de nós, foi-nos dada por Deus como presente precioso. No salmo 8, ao contemplar a obra da criação – a lua, as estrelas, os diversos animais e, em especial, o ser humano – o salmista louva e agradece a Deus por tanta generosidade. Já no Livro do Levítico (25,23-24), Deus adverte o povo a não transformar a terra em mercadoria, porque ela é sua; nós somos apenas estrangeiros e hóspedes nela. Essa passagem nos ensina que a Terra é um bem comum, que deve ser preservado para as gerações futuras. Defende, ainda, o direito ao descanso da terra e dos animais durante o ano sabático (cf. Lv 25,1-7).

Nos Evangelhos, vemos Jesus contemplar com ternura a obra da criação. Suas parábolas brotam desse olhar atento à natureza, revelando como cada criatura é preciosa aos olhos do Pai. Ele ensinava: “Olhai os pássaros do céu: não semeiam, não colhem, nem guardam em celeiros. No entanto, o vosso Pai Celeste os alimenta” (Mt 6,26). Comparava o Reino dos céus a um grão de mostarda: pequeno e aparentemente insignificante, mas que cresce e torna-se um grande arbusto oferecendo abrigo aos pássaros do céu (cf. Mt 13,31-32). Ele é a Palavra, na qual o Pai cria todos os seres. “Tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1,16). Ele mergulhou na nossa mãe terra e viveu em tudo a nossa condição, menos o pecado, indo até à morte de cruz. Nele a criação encontra sua plenitude e redenção.

A Bíblia também revela a tragédia da desobediência humana, que rompe a harmonia da criação. Aquele que tinha a missão de cultivar e guardar o paraíso, torna-se seu destruidor. Diante isso, o criador o expulsa do Éden (cf. Gn 3,23-24).

Embora infiéis ao seu projeto, Deus não deseja a nossa destruição. No símbolo do arco-íris posto na nuvem após o dilúvio (cf. Gn 9,13), Ele prometeu jamais destruir a terra, mesmo povoada de pecadores. O arco-íris simboliza a aliança de paz entre Deus e todas as suas criaturas. O arco do guerreiro foi deposto! Deus nunca mais ferirá a humanidade. Esse compromisso divino ecoa em São Paulo, que retrata a criação gemendo e sofrendo, na expectativa da redenção que virá com o cuidado e o respeito a ela dedicados, ansiosa pela revelação dos filhos de Deus (cf. Rm 8,19-22).

O tema da CF deste ano “Fraternidade e Ecologia Integral”, tratado pela oitava vez, não é casual, mas fruto da preocupação da Igreja com o momento crítico da história, em que as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade e a degradação ambiental ameaçam o planeta, e também a vida e a dignidade de milhões de pessoas, especialmente as mais pobres e vulneráveis. Por isso, seu objetivo geral é promover um processo de conversão integral, ouvindo o grito dos pobres e da Terra.

A ecologia integral, conceito central da encíclica Laudato Si’ do papa Francisco, entende a criação como um todo interligado, onde o cuidado com o meio ambiente está diretamente relacionado à justiça social e à promoção da fraternidade. Vai além da preservação da natureza, envolve a comunhão, respeito e colaboração entre as pessoas e o mundo criado, no campo e na cidade (cf. Texto-base da CF 2025, n. 11). Nessa visão, o mandamento “não matarás” protege não apenas a vida humana, mas igualmente a vida dos rios, das florestas, dos oceanos, pois cada criatura carrega a marca do seu criador.

Além dessas preocupações, a motivação para a temática considerou os 800 anos da composição do “Cântico das Criaturas”, de São Francisco de Assis; a comemoração do 10° aniversário da Laudato Si, primeira encíclica dedicada inteiramente à ecologia integral, que atualizou o ensino social da Igreja; a realização da COP 30 no Brasil, conferência importante para o futuro do planeta, entre outras motivações.

Com corações partidos, testemunhamos a crueldade da crise climática: ondas de calor, secas devastadoras e inundações como as do Rio Grande do Sul, em 2024, que deixaram mais de 1 milhão de pessoas desabrigadas e incontáveis vidas perdidas. Como medir a dor de quem viu seu lar e memórias serem arrastados pelas águas? Essa realidade perversa clama por conversão ecológica, revisão das nossas relações com Deus, com suas criaturas e com os nossos irmãos. Exige ação das autoridades responsáveis pelo povo.

A crise socioambiental, como alerta o texto-base da CF 2025 (n. 26), é fruto de um modelo econômico predatório que mercantiliza a vida: transforma bens comuns em commodities, promove o extrativismo desenfreado e alimenta um consumismo insaciável, como se os recursos fossem infinitos. As consequências são visíveis e dramáticas: degradação do solo, florestas devastadas, rios contaminados, escassez de água, espécies em extinção e um clima em colapso.

O Cerrado, berço das águas e segundo bioma mais importante do país, agoniza sob as motosserras e o fogo. Sua vegetação única, arrancada para dar lugar a pastagens e monoculturas (cf. Texto-base n. 28), deixa um rastro de desertificação que causa prejuízos climáticos para muitos estados brasileiros. Enquanto a crise socioambiental afeta de modo mais violento as pessoas mais pobres e vulneráveis, o lucro fica em poucas mãos. A riqueza é privatizada e a destruição socializada, realidade perversa que clama justiça aos céus.

O tempo da Quaresma é propício para repensarmos nossa relação com Deus, com os irmãos e com toda a criação. A Campanha da Fraternidade convoca-nos à conversão ecológica, que exige mudança no nosso jeito de ser, pensar e agir, como pessoas e comunidade. Somos desafiados a buscar um modo de vida mais integrado com Deus, com as pessoas e toda a criação, em que prevaleça a cultura do amor e da paz (cf. Texto-base n. 56), ao invés do consumismo e do descarte.

Nossa cidade é cercada por belezas naturais, dom de Deus, que nos inspiram e nos comprometem com a sua preservação. É nossa responsabilidade proteger nossos rios, paisagens e áreas verdes, além de promover práticas sustentáveis no dia a dia. Conforme a Constituição Federal (art. 225), todos temos direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e cabe ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (cf. Texto-base, n. 36).

A escuridão desta noite simboliza também a tentativa de retornar ao caos original, de apagar a luz do mundo (cf. Jo 8,12). Quando Judas sai para trair Jesus, é noite (cf. Jo 13,30); no monte das Oliveiras, símbolo do Paraíso perdido, Jesus sofre interiormente enfrentando a “hora do poder das trevas” (cf. Lc 22,39-53), sendo preso e amarrado pelos soldados à luz de tochas (cf. Jo 18,1-12); durante a noite, Pedro nega Jesus, diante de uma fogueira (cf. Lc 22,54-62); Mas a grande escuridão ocorreu do meio-dia até às três horas da tarde, quando o sol parou de brilhar e Jesus, com um forte grito, entregou seu espírito ao Pai (cf. Lc 23,44-46). Nesse grito ressoa o clamor da criação agredida e dos pobres esquecidos, que anseiam por vida.

A mesma escuridão, que envolveu a paixão de Cristo, continua no desrespeito à ecologia integral. Os sinais estão aí: nosso Rio Vermelho, cada vez mais seco; nossas Serras gritam por socorro no estalar dos incêndios e choram lágrimas, que sobem ao céu na fumaça da criação ferida, e descem sob a terra como cinza da destruição. Os pobres são as primeiras vítimas e clamam por justiça. O fogo que destrói nossas matas não ilumina a mente dos poderosos para combatê-lo. Muitos parecem dormir, como os discípulos durante a agonia de Jesus (cf. Mc 14,37).

Mas as trevas não apagaram a luz de Jesus (cf. Jo 1,5) e não nos vencerão. Ele ressuscitou, a pedra foi removida da sua sepultura. Ele é a Luz do mundo (cf. Jo 8,12). Ainda há esperança: nas cooperativas que colhem o lixo das ruas e o transformam em dignidade; nas crianças que têm sensibilidade ecológica e plantam árvores nas escolas; nos agricultores que resistem semeando sementes saudáveis, ao invés de veneno; na escola agroecológica da nossa Diocese, no empenho da CPT pela preservação das nascentes; no grito do Cerrado que ecoa nossas vozes em defesa desse bioma ameaçado; nas diversas entidades civis e instituições públicas que se empenham na defesa da ecologia; nos países que se encontram para buscar soluções nas conferências mundiais sobre os problemas climáticos. Enquanto a falsa luz do consumismo desenfreado tenta brilhar, a luz do ressuscitado ilumina o verdadeiro caminho da felicidade, onde o cuidado com os pobres e com a criação andam de mãos dadas.

Prezadas autoridades civis, militares e religiosas, essas tochas que iluminam seus rostos, aqueçam seus corações e iluminem suas mentes para o árduo e importantíssimo trabalho de proteger o Cerrado, como um dever sagrado. Queridos irmãos e irmãs vindos de diversas regiões, que a luz do ressuscitado, prestes a brilhar na noite da vigília pascal, renove a nossa esperança e nos plenifique de coragem profética para viver e promover a ecologia integral.

(Cantar: Onipotente e bom Senhor).
Goiás, 16 de abril de 2025
+ Jeová Elias Ferreira Bispo de Goiás

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