InícioBispo DiocesanoA Voz do PastorDeus não perdoa com um Decreto, mas com uma carícia

Deus não perdoa com um Decreto, mas com uma carícia

Este IV domingo da Quaresma é chamado “Laetare”, ou seja, domingo da alegria, pois se aproxima a Páscoa do Senhor. No Evangelho de hoje, destaca-se a profunda alegria do pai que abraça e cobre de beijos seu filho que volta ao lar (v. 20). Embora a Quaresma seja marcada por um tom de penitência e sacrifícios, no Evangelho resplandece a alegria da salvação, que culmina na gloriosa cruz de Cristo, convidando-nos insistentemente à alegria. Afinal, não devemos viver uma Quaresma sem Páscoa (cf. Evangelii Gaudium, nn. 5 e 6). A alegria é sempre um dom que brota quando aceito construir minha vida numa cultura de hospitalidade (cf. Mendonça, J. Tolentino, Libertar o Tempo, p. 92). É um frágil dom, muitas vezes conatural com o sofrimento e a dor, que escava profundidades na nossa vida, que serão preenchidas pela alegria. “Nesse sentido, a alegria é filha da esperança, é fruto da esperança” (Mendonça, J. Tolentino, Nenhum caminho será longo, p. 141).

O capítulo 15 é considerado o coração do Evangelho de Lucas, por conter as três parábolas da misericórdia: da ovelha perdida e reencontrada, da moeda perdida e encontrada e do filho perdido e reencontrado, mais conhecida como parábola do “filho pródigo”. O texto começa com uma introdução em que Jesus acolhe os publicanos e pecadores que se aproximam para escutá-lo, mas é questionado pelos fariseus e mestres da Lei por acolhê-los e fazer refeição com eles (vv. 1-2). É nesse contexto que Jesus conta as três parábolas. A liturgia deste domingo foca na terceira, a mais profunda e comovente, que preferimos chamá-la parábola do pai misericordioso, ao invés de parábola do “filho pródigo”. O relato de Jesus reserva um lugar para aqueles que se consideram santos e rejeitam os pecadores: eles são o filho mais velho, que se julga fiel cumpridor dos deveres e possuidor de direitos, mas é incapaz de acolher o irmão que peca (cf. vv. 1-2; 28-30).

A parábola do pai misericordioso, exclusiva de São Lucas, é um dos textos mais conhecidos dos Evangelhos, obra prima da literatura e da espiritualidade cristã. Foi pintada por Rembrandt, no século XVII, em uma enorme tela de 2m de altura por 1,80m de largura, chamada “A volta do filho pródigo”; também cantada em inúmeras canções e comentada em diversos livros. O texto é comovente e nos insere no relato feito por Jesus, em que nos identificamos com algum dos personagens envolvidos. Parece uma bela peça teatral envolvendo o drama de uma família, com suas dores e esperanças. Destacam-se três personagens principais: o pai, protagonista da narrativa, e seus dois filhos.

Lucas inicia sua narrativa com o filho mais novo pedindo ao pai a parte da herança que lhe cabe. Esse pedido, na cultura da época, era um ato de extrema crueldade, pois equivalia a desejar a morte do pai. Caso algum filho ousasse fazer esse pedido, certamente não teria uma resposta tão generosa do pai, mas receberia uma surra por ousar fazê-lo. O filho não somente quer a herança, mas o direito de dispor dela como lhe aprouver. No entanto, o pai, num gesto de amor surpreendente, divide os bens entre os dois filhos (v. 12). Com certeza esse pai não é um homem da cultura de então, mas Deus, que nos concede o que não temos direito.

O filho mais novo, poucos dias depois, juntou o que era seu e partiu para uma região longínqua (v. 13), rompendo totalmente os vínculos familiares e cometendo outro ato de crueldade e de traição aos valores familiares e comunitários. Longe dos cuidados paternos, aquele jovem esbanja os bens numa vida desregrada. Depois de dilapidá-los, começa a passar necessidades. Consegue um trabalho para cuidar de porcos, cúmulo da humilhação para um judeu. Sofre a fome e deseja comer o alimento dos porcos (vv. 15-16). Ao atingir o fundo do poço, cai em si e deseja voltar, não por estar arrependido, mas na esperança de ter o que comer, como os servos do seu pai (vv. 17-18).

A partida do filho causou ao pai uma dor difícil de descrever, profunda e dilacerante. Somente quem já viveu a angústia de ter um filho desaparecido, perdido no mundo, pode compreender a dimensão desse sofrimento. No entanto, o amor nunca desiste do amado! A esperança permaneceu viva no coração do pai: cada dia ele vislumbrava o caminho, desejando encontrar o filho querido.

Um belo dia, conforme Lucas, o pai avistou o filho ainda distante e, movido de compaixão, sentimento atribuído nos Evangelhos somente a Jesus, o bom samaritano, correu ao seu encontro, abraçou-o e o cobriu de beijos (v. 20). Ele partira cheio de confiança e bem alimentado, agora retornava humilhado e sofrido. O pai reconhece naquele jovem esfarrapado o seu filho querido: quem ama guarda para sempre no coração o rosto da pessoa amada, pois o amor verdadeiro não esquece a imagem daqueles que nos são mais queridos. O pai não permite que seu filho conclua o discurso preparado: dá-lhe um abraço e cobre-o de beijos. Que alegria reencontrá-lo! O pai faz uma festa! A misericórdia restaura tudo, sem exigências nem condições. Esse pai representa a misericórdia de Deus, que não perdoa com um decreto, mas com uma carícia. “Perdoa acariciando as nossas feridas de pecado, porque ele é o todo perdão, comprometido com a nossa salvação” (Papa Francisco, O nome de Deus é misericórdia, p. 23). Foi uma verdadeira ressurreição: o filho estava morto e tornou a viver (vv. 24 e 32b);

O filho mais velho, até então ausente da narrativa, aparentemente dedicado e cumpridor de suas obrigações, revela sua verdadeira face ao se recusar a acolher o irmão e ao tentar frustrar a alegria do pai. Ele não se enxerga como filho, mas como um servo que merece ser remunerado pelo trabalho realizado. Além disso, acusa indevidamente o irmão de ter dilapidado os bens do seu pai com prostitutas (v. 30). O pai, que havia interrompido o discurso do filho mais jovem, permite que o mais velho desabafe seu descontentamento, tratando-o com a mesma bondade e paciência. A misericórdia de Deus abraça a todos. O filho mais velho representa os fariseus e mestres da Lei, presentes no início da narrativa, que se consideravam justos, mas falhavam em compreender a essência do amor.

É inevitável não se identificar com algum dos personagens da parábola. Normalmente nos vemos no filho mais jovem, que abandona o amor do pai e necessita reconciliar-se com ele. Algumas vezes nos vemos no filho mais velho: duros de coração, incapazes de perdoar o irmão que errou. Mas devemos ser como o pai: misericordiosos, acolhedores dos que erram (cf. Lc 6,36) e capazes de festejar o retorno deles. Devemos nos ver não somente naquele que é perdoado, mas também naquele que perdoa e tem compaixão (cf. Nouwen, Henri J. M., A volta do filho pródigo, p. 133).

A parábola, de fato, deixa em aberto a decisão do filho mais velho: ele participará da festa de acolhida do seu irmão “que estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v. 32b)? Um professor de ensino religioso no norte da Itália, após explicar essa parábola aos seus jovens alunos, pediu que dessem continuidade à história. A maioria escreveu que o pai acolheu o filho de volta, puniu-o severamente e o mandou viver com os seus servos para aprender a não gastar toda a riqueza da família (cf. O nome de Deus é misericórdia, p. 83). No entanto, eu prefiro imaginar um desfecho feliz: diria que o filho mais velho, após refletir, reconheceu sua intransigência e justificou-a pelo cansaço do trabalho. Então, emocionado, abraçou o pai e o irmão, tomou uma taça de vinho com eles e mergulhou de coração na festa! Afinal, todos devem celebrar a alegria da reconciliação.
Neste tempo quaresmal, devemos experimentar a alegria do perdão de Deus e a abrir nosso coração a perdoar, como o pai misericordioso da parábola.

+ Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano de Goiás

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