Continuamos acompanhando Jesus na sua grande viagem teológica a Jerusalém. Ainda estamos no início da viagem. Jesus já enfrentou a recusa dos samaritanos em dar hospedagem, e agora enfrenta o questionamento de um doutor da lei, para testá-lo (v. 25). O texto do Evangelho deste domingo se desenvolve em dois momentos interligados: no primeiro, apresenta o diálogo de Jesus com um especialista na Torá, a lei dos judeus; e no segundo, apresenta o relato do bom samaritano.
Lucas diz que um mestre da lei se levantou e, para por Jesus em dificuldades, perguntou o que deveria fazer para ter como herança a vida eterna (v. 25). A palavra herança, conforme entendimento do Primeiro Testamento, se refere às realidades terrestres. Contudo, a compreensão do especialista envolve a vida perpétua no mundo novo. A pergunta é quanto à prática da fé: o que fazer? Jesus responde, conforme as regras do debate em vigor, com outra pergunta: “O que está escrito na Lei? “(v. 26). Os especialistas tinham catalogado 613 mandamentos na Lei, o nosso Pentateuco – os cinco primeiros livros da Bíblia: 248 eram prescrições, formulados de modo positivo: o que deviam fazer; e 365 eram proibições, formulados de modo negativo: o que não devia ser feito. Destes mandamentos, o mestre destaca dois como os mais importantes: amar a Deus totalmente, com todo o ser e de todo coração (v. 27), citando o texto do Shemá, que o judeu reza cotidianamente (Cf. Dt 6,5); mas acrescenta, e une a este, o mandamento do amor ao próximo como a si mesmo (Cf. Lv 19,18). A resposta contém uma boa síntese dos 613 mandamentos, é a essência deles, pois só o amor dá sentido e justifica a lei (Cf. Bíblia do Peregrino – NT, nota à p. 230). Jesus concorda com o conteúdo da resposta dada, mas diverge no modo de pô-los em prática: “Faz isto e viverás” (v. 28).
Seguindo as regras dos debates de então, novamente o mestre da Lei retruca com outra pergunta: “E quem é o meu próximo?” (v. 29). O letrado não tem dúvida sobre quem é Deus, mas questiona sobre a identidade do seu próximo. A compreensão de próximo no Primeiro Testamento era restrita, envolvia o compatriota, o membro do mesmo povo. Jesus não responde com teorias ou abstrações, mas apresentando uma situação concreta da vida, comum naquela região, para que o próprio mestre da lei escolha a resposta à sua pergunta. Ele conta a parábola do bom samaritano. Diz que um homem, sem especificar suas características, quando viajava de Jerusalém a Jericó, foi assaltado, agredido e largado quase morto no caminho. Ficou vulnerável e necessitando de socorro. Nisso, passaram algumas pessoas por ali. Duas eram ligadas à religião: um sacerdote e um levita. Ambos viram o ferido, mas passaram longe. Eles estão mais preocupados com a pureza ritual do que com a justiça social. Separam culto de compaixão. São indiferentes ao sofrimento daquele homem ferido e necessitado de ajuda. Por que não o ajudaram? Talvez porque não pertencia ao seu grupo.
A terceira personagem que passa é um samaritano, pessoa mal vista pelos judeus, considerado herege, tido como inimigo e marginalizado. Ele não segue uma religião apegada aos ritos de purificação. Pertence ao grupo dos sofridos, por isso reage de modo distinto, não fica indiferente: aproximou-se, viu e sentiu compaixão (v. 33). Jesus descreve com mais detalhes os gestos realizados por ele em favor do ferido: fez curativos nas suas feridas, colocou o homem no seu próprio animal, conduziu-o a uma pensão e pagou os gastos com sua hospedagem.
Lucas destaca três verbos que descrevem a ação do samaritano: viu, aproximou-se e sentiu compaixão. Também relata sobre os cuidados dedicados ao homem ferido. Os outros dois igualmente viram, mas não se aproximaram, não cuidaram, não tiveram compaixão. Ficaram completamente indiferentes. Numa crônica sobre a cegueira, Rubem Alves afirma, citando Bernardo Soares, que “não vemos o que vemos; vemos o que somos”. No que vemos estão escondidas as linhas do nosso próprio rosto… o que vemos é o mundo arranjado à nossa imagem e semelhança. A gente vê segundo o que está dentro (Sete vezes Rubem, P. 287). Pode-se perguntar: o que estava dentro daqueles dois personagens?
A palavra compaixão, usada para descrever o sentimento do samaritano, vem de um verbo grego (splanchnízomai) e significa vísceras ou útero materno, é um amor visceral. É o sentimento que marcava Jesus diante de multidões sofridas. Ele se deixa comover pela miséria humana, pela nossa necessidade, pelo nosso sofrimento. Não olha para a realidade exterior sem se deixar tocar, como se tirasse uma fotografia; Ele se deixa envolver. Precisamos deste olhar quando nos encontramos perante um pobre e marginalizado, um pecador (Cf. O nome de Deus é misericórdia p. 130). No Evangelho de Lucas, além do samaritano, somente Jesus e o Pai são capazes de ações de compaixão. O bom samaritano é Jesus.
Compaixão significa sofrer com, sofrer juntos, não permanecer indiferente à dor e ao sofrimento alheio. O samaritano não fica indiferente diante da dor do ferido, sofre com ele, mas também age. A compaixão não é pena, como quando vemos um cachorrinho morrer na rua, mas é envolver-se no problema dos outros, é arriscar a vida ali (Papa Francisco, pregação na Santa Marta 17/09/19). Para o Papa Francisco, a Igreja deve ter entranhas maternas de misericórdia. “Faz falta uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia” (encontro com o episcopado do Brasil).
Vivemos cercados por muitas pessoas machucadas, sofridas. Corremos o risco de nos acostumar, ignorar a sua dor ou ficar completamente indiferentes como os dois religiosos da parábola. O risco de uma religião preocupada somente com os ritos, com a estética, com muitos panos e esquecendo o compromisso com a vida ferida, essencial na missão de Jesus. O Papa Francisco ficou impactado com uma foto publicada no jornal L’osservatore Romano e exposta na esmolaria do Vaticano, chamada indiferença, contendo uma senhora rica e bem vestida saindo de um restaurante chique e deparando-se com um pobre na calçada. Ela vira a cabeça para o outro lado e o ignora. O papa diz que “para poder se apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença”, que nos torna incapazes de ter compaixão diante do clamor alheio (EG n. 54).
Ao final da parábola, Jesus interroga ao seu interlocutor sobre qual dos três personagens é o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes (v. 36) e obtém a resposta: aquele que usou de misericórdia para com ele (v. 37). Então Jesus conclui: “vai e faz a mesma coisa” (v. 37). “A cada um de nós Jesus repete aquilo que disse ao doutor da Lei: Vai e também tu faz o mesmo! Somos chamados a percorrer o mesmo caminho do bom samaritano, que é figura de Cristo: Jesus debruçou-se sobre nós, fez-se nosso servo, e foi assim que nos salvou, para que também nós pudéssemos amar como Ele nos amou, do mesmo modo” (Cf. audiência do Papa Francisco na Praça São Pedro, dia 27/04/2016).
+Dom Jeová Elias Ferreira
Bispo Diocesano