O texto do Evangelho deste domingo apresenta o início da grande viagem de Jesus a Jerusalém, onde culmina a sua missão condenado à morte, mas também ressuscitando dos mortos. Mais do que uma viagem geográfica, é uma viagem teológica, pois Jerusalém representa a subida para a cruz, a elevação de Jesus aos braços do Pai. A cidade de Jerusalém tem muita importância na obra de Lucas: é mencionada no início e no fim do seu Evangelho (Cf. Lc 1,8-9; 24,52-53) e também no início dos Atos dos Apóstolos (Cf. At 1,4). Ao apresentar Jesus em viagem, Lucas o mostra como uma pessoa dinâmica, que não para, em saída com os seus discípulos. Jesus caminha com os seus discípulos, Jesus indica o caminho aos seus discípulos, Jesus se faz caminho para os seus discípulos. Caminho foi como chamaram o movimento de Jesus, antes dos seus seguidores receberem o nome de cristãos (Cf. At 11,26). Durante a viagem, Jesus vai ensinando, realizando sinais e provocando as pessoas a fazerem opções em suas vidas: a estar com Ele ou contra Ele.
Lucas afirma que estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu e Ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém (v. 51), onde seria elevado ao céu. Lucas dedicará 10 capítulos do seu Evangelho a essa viagem. Jesus enviou mensageiros à sua frente para preparem hospedagem, contudo a cidade dos samaritanos não os recebeu. Os samaritanos não gozavam de boa reputação diante dos judeus, que os consideravam pessoas impuras e os evitavam. Mas Jesus não compartilha desse preconceito religioso. Em Lucas, Jesus até destaca a figura de um samaritano como modelo de amor (Cf. Lc 10,29-37). A recusa dos samaritanos em dar hospedagem provoca indignação em Tiago e João, que propõem a Jesus mandar fogo do céu para destruí-los (v. 54b). Eles são intolerantes, manifestam o desejo de vingança, o que é mais grave do que negar a hospedagem, que também era considerado de gravidade na cultura de então. A atitude dos dois discípulos contrasta com a de Jesus, tolerante e simpático aos samaritanos, que os repreende. O verbo repreender também foi utilizado por Lucas em alguns exorcismos realizados por Jesus (Cf. 4,35; 8,24). Logo no início de sua viagem, Jesus exorciza o fanatismo religioso e a intolerância dos seus discípulos. Eles partem para outro povoado (vv. 55-56). Lucas não menciona onde eles dormiram naquela noite.
Como esses dois discípulos, que propõem incendiar a cidade dos samaritanos que não os acolhem, ao longo da história muita violência foi cometida em nome da fé, por pessoas tidas como religiosas, pretensas defensoras da ortodoxia de sua religião, contrariando o ensinamento e a prática de Jesus Cristo. “Chegou-se inclusive a bendizer guerras, cruzadas e posições militaristas, sem ter consciência de que isso ia contra algo essencial da adesão a Jesus Cristo” (Pagola, p. 169). Com o tribunal da “santa inquisição”, pessoas foram condenadas contra a pureza da fé, entra elas, muitas foram levadas às fogueiras. Batemos no peito e pedimos perdão por isso. O discurso de ódio contra os diferentes, posto nos lábios de autoridades que se dizem cristãs, destoa completamente do Evangelho de Jesus Cristo.
Enquanto estão caminhando, aparecem três personagens inominados. A intenção do Evangelista Lucas parece indicar que eles representam qualquer um de nós. O primeiro e o terceiro se propõem a seguir Jesus, tomam a iniciativa. O segundo é chamado por Jesus. Ao longo da viagem, as pessoas são interpeladas por Jesus, que não as engana quanto aos desafios a serem enfrentados. Ele não deseja ter números, mas seguidores comprometidos com o seu projeto de vida, que o sigam sem reservas, sem buscar nele falsas seguranças e que realizem as rupturas necessárias. Livremente as pessoas devem dizer sim ou não. Cada uma deve escolher o seu próprio caminho e assumir as consequências das suas escolhas. Lucas não nos diz que decisão tomou cada um dos três.
O primeiro personagem se oferece para seguir Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores” (v. 57). Parece ter muita disposição para o seu seguimento, mas não sabemos se essa empolgação resistiu ao despojamento de Jesus, que não tem onde repousar a cabeça. Mesmo as raposas e os pássaros se mostram mais protegidos do que Jesus (v. 58). “Seguir Jesus é ‘viver a caminho’, sem instalar-se no bem-estar e sem buscar falso refúgio na religião” (Pagola, O Caminho Aberto por Jesus – Lucas, p. 164).
O segundo personagem, chamado por Jesus, tinha justificativas para adiar sua decisão: pede para ir enterrar o pai. O sepultamento de um morto era ato sagrado e continua sendo uma obra de misericórdia. A resposta de Jesus – “Deixa que os mortos enterrem seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus” (v. 60) – é desconcertante. O termo “morto” deve ser entendido em sentido simbólico, como aquilo que já não tem importância. Importa e tem urgência agora o anúncio do Reino de Deus. A vida é o que vale, não a morte. “Abrir caminhos para o Reino de Deus trabalhando por uma vida mais humana é sempre a tarefa mais urgente. Nada deve atrasar nossa decisão” (Pagola, p. 165).
Ao último personagem que se oferece para seguir Jesus, mas pede para despedir-se dos seus familiares, é dito que “quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (v. 62). A preocupação de quem ara a terra deve ser olhar para a frente, deve ser a esperança de que o seu trabalho possa frutificar. “O que está para ser feito é maior do que o já feito. A esperança olha para a frente, a saudade para trás” (Bortolini, Roteiros Homiléticos, p. 629). Conforme o Pe. Pagola, “não é possível seguir Jesus olhando para trás. Não é possível abrir caminhos para o Reino de Deus permanecendo no passado. Trabalhar no projeto do Pai exige dedicação total, confiança no futuro de Deus e audácia para seguir os passos de Jesus” (ibidem, p. 165). Usando a frase folclórica do prefeito Odorico Paraguaçu, da novela “O Bem-amado”, de Dias Gomes, “deixemos os ‘patrasmente’ e olhemos ‘prafrentemente’ ”. Não é possível caminhar olhando somente para trás. Claro que não podemos esquecer a nossa história, perder a memória da caminhada. Mas também não devemos estacionar no passado. Jesus convida a não se apegar à segurança do caminho já percorrido, a não ter medo de desbravar novos itinerários. A abrir caminhos novos. Não podemos dar respostas velhas a questionamentos novos.
+Dom Jeová Elias Ferreira
Bispo Diocesano