Continuamos acompanhando Jesus na sua caminhada a Jerusalém, onde sofrerá a condenação injusta à morte na cruz. Ao longo do caminho, Ele nos ensina os valores do Reino e sinaliza o desfecho da sua peregrinação terrestre com o mistério da sua paixão, morte e ressurreição. Diante dele, as pessoas devem se definir: contra ou a favor, não podem ficar indiferentes.
Os ditos de Jesus no Evangelho deste domingo estão entre os textos mais difíceis de interpretação e que podem provocar mal-entendidos, especialmente a afirmação de que Ele veio “lançar fogo sobre a terra e como gostaria que já estivesse aceso” (v. 49). Também a afirmação de que veio trazer a divisão, não a paz (v. 51). Essas afirmações são estranhas ao estilo literário de Lucas, o que faz pensar que ele as tenha recolhido de outra fonte. Elas destoam da imagem cultuada de Jesus como manso e humilde de coração e príncipe da paz. Como esses ditos estão inseridos no contexto da viagem a Jerusalém, sinalizam a proximidade da morte dele na cruz. Uma emissora de televisão aberta do nosso país entrevistou algumas pessoas, numa praça de uma grande cidade, perguntando quem teria pronunciado essas frases. Algumas pessoas responderam terem sido ditas por Fidel Castro, outras disseram que seriam de Che Guevara, para outras, seriam de Lula. Ninguém imaginava que eram frases de Jesus.
O breve texto do Evangelho deste domingo pode ser dividido em duas partes: na primeira se entrelaçam o tema do fogo e do batismo (Vv. 49-50); e na segunda o tema da divisão trazida por Jesus (vv. 51-53).
A imagem do fogo pode ser entendida de diversas maneiras. No primeiro testamento, ele simboliza a manifestação da santidade divina, que atrai e provoca temor. Na sarça queimando sem se consumir, Deus aparece a Moisés e o chama para libertar o seu povo da escravidão no Egito (Cf. Ex 3,1-9). Na aliança realizada com Abraão, no rito dos animais esquartejados, Deus passa entre as suas bandas como uma tocha de fogo (Cf. Gn 15,17). Nos lábios de alguns profetas, o fogo simboliza a ira divina diante dos pecadores (Cf. Am 1,4; 2,5; Is 30,27.30.33). O fogo é elemento que purifica e transforma, também símbolo do juízo final (Cf. Is 6,6; 66,15-16; Ml 3,2). Esse fogo devorador fará surgir um mundo novo. O fogo trazido por Jesus significa a santidade divina com a proposta de destruição de todo egoísmo, injustiça e opressão que desfiguram o mundo. Das cinzas do mundo velho surgirá um mundo renovado pelo amor, pela partilha, pela fraternidade e pela justiça. Isto acontecerá pela ação do Espírito Santo, representado por Lucas com a imagem de línguas de fogo (Cf. At 2,1-4).
Quanto à afirmação de Jesus sobre a necessidade de receber o batismo e a ansiedade dele para que logo aconteça (v. 50), trata-se da sua morte, que ocorrerá no final da caminhada, na cidade de Jerusalém. Esse batismo é o mergulho de Jesus na morte, consequência de uma vida doada pela vida, até o extremo. Ele emerge desse mergulho devolvendo a vida em plenitude para todos.
Na segunda parte do texto (vv. 51-53), Jesus questiona as pessoas se pensam que Ele veio trazer a paz sobre a terra e afirma que veio trazer a divisão (v. 51). Parece divergir da imagem que Lucas apresenta do Messias, que veio guiar os nossos passos no caminho da paz (Cf. Lc 1,79), e do ressuscitado, que concede a paz como fruto da sua vitória sobre a morte, nas primeiras aparições (Cf. Lc 24,36). Como entender esse texto? O príncipe da paz diz que não veio trazer a paz, mas a divisão! A afirmação de Jesus não é expressão de um desejo seu, mas consequência da adesão ao seu projeto de vida. Ele fez opções claras pelos mais sofridos e fragilizados, que contrariavam alguns interesses. Quem o segue deve estar em sintonia com o seu ensinamento. A paz trazida por Jesus é fruto da justiça (Cf. Is 32,17); e a justiça é o reconhecimento dos direitos feridos dos mais pobres, que devem ser respeitados. Isto provoca insatisfações e divisões. Jesus não fez concessões, não negociou os valores do Reino, foi coerente com o projeto que defendia até as últimas consequências: sua condenação injusta à morte de cruz. Diante do seu projeto, muitos se dividem: alguns o acolhem, outros o rejeitam e tantos desvirtuam a mensagem e deformam a imagem de Jesus. A exigente proposta trazida por Ele, mesmo que não seja a sua intenção, provoca divisão.
Neste segundo domingo de agosto celebramos o Dia dos Pais e abrimos a Semana Nacional da Família, com o tema: “Amor familiar, vocação e caminho de santidade”. Nossa gratidão aos pais que disseram sim ao chamado de Deus à vocação matrimonial e buscam perseverar na resposta dada, acolhendo a vida dos filhos como dom divino e como uma missão. Que Deus os abençoe!
A família, conforme afirma o Documento de Aparecida, é patrimônio da humanidade e constitui um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos e caribenhos; é escola da fé e das virtudes humanas (Cf. DAp n. 114). São muitos os desafios enfrentados pelas famílias. A constatação de Jesus da divisão presente nas nossas famílias é uma realidade que assusta. Vivemos num mundo plural, onde a família não é uma ilha. A diversidade pode ser uma riqueza, e as diferenças legítimas são necessárias. Elas não devem provocar ódio. Quando em sintonia com os valores do Reino propostos por Jesus, as diferenças nos enriquecem. O Papa Francisco, na Amoris Laetitia, após apresentar a beleza do amor familiar no projeto divino, constata também um “rastro de sofrimento e sangue” que acompanha as famílias nas páginas da bíblia e nos nossos dias (Cf. núm. 19-24). Entre os sofrimentos, destaca o desemprego e a precariedade do trabalho em que vive a sociedade atual em muitos países (n. 25). No Brasil, são cerca de doze milhões de desempregados. Em consequência, a fome assola 33 milhões de pessoas e tantas outras vivem a insegurança alimentar. Um grande sofrimento!
Em sintonia com o Papa Francisco, peço à Sagrada Família por nossas famílias:
“Jesus, Maria e José, / em Vós contemplamos o esplendor do verdadeiro amor, / confiantes, a Vós nos consagramos. / Sagrada Família de Nazaré, / tornai também as nossas famílias / lugares de comunhão e cenáculos de oração / autênticas escolas do Evangelho / e pequenas igrejas domésticas. / Sagrada Família de Nazaré,/ que nunca mais haja nas famílias / episódios de violência, de fechamento e divisão; / e quem tiver sido ferido ou escandalizado/ seja rapidamente consolado e curado. / Sagrada Família de Nazaré, / fazei que todos nos tornemos conscientes / do caráter sagrado e inviolável da família, / da sua beleza no projeto de Deus. / Jesus, Maria e José, / ouvi-nos e atendei a nossa súplica. Amém! (Amoris Laetitia n. 325).
+Dom Jeová Elias Ferrreira
Bispo Diocesano