“Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão” (Lc 6,42b)
Neste domingo, o Evangelho de Lucas nos apresenta a continuação do “Sermão da Planície”, em que Jesus reúne diversos ensinamentos, proferidos em vários momentos, advertindo os seus discípulos contra os falsos mestres. Escrito na década de 80, o Evangelho reflete a preocupação da comunidade cristã primitiva, quanto ao risco de desvio da essência do ensinamento de Jesus. Para ilustrar sua mensagem, o evangelista faz três comparações enfatizando a responsabilidade em seguir fielmente o verdadeiro mestre: a impossibilidade de um cego guiar outro cego (v. 39); a necessidade de remover a própria trave, para, assim, poder retirar o cisco do olho do irmão (v. 42); e o reconhecimento de uma árvore pelos seus frutos (v. 44).
Nas duas primeiras comparações, Jesus adverte contra a hipocrisia daqueles que se mostram intolerantes com os erros dos irmãos, mas não reconhecem suas próprias falhas. A hipocrisia indica a dissimulação voluntária e mostra a contradição entre o que se pensa e o que se faz, seja de modo consciente ou não (cf. TEB nota g, p. 172). A crítica de Lucas dirige-se especialmente aos membros da comunidade que se julgam superiores aos outros, mais virtuosos ou mais conhecedores da verdade e emitem juízos temerários em relação aos demais. Pessoas que veem a religião como algo a ser dito e ensinado para os outros, mas que não fala para si (cf. Bortolini, Roteiros Homiléticos, p. 606).
Diferente de Mateus, que dirige a crítica aos fariseus, Lucas alerta os próprios discípulos de Jesus. Na comunidade cristã, as relações devem ser pautadas pela correção fraterna, e não pela condenação apressada de quem aparenta estar errado, pois o julgamento cabe a Deus, que é misericordioso (cf. Lc 6,36-38). O questionamento de Jesus – “pode um cego guiar outro cego?” (v. 39), serve como um aviso aos seus discípulos para que não se coloquem acima do Mestre, evitando repetir o erro dos fariseus, chamados por Jesus de “guias cegos” (cf. Mt 15,14; 23,16.24). A indagação de Jesus é uma advertência ao risco da arrogância intelectual e da autoconfiança excessiva, que leva alguns a se considerarem detentores da verdade e superiores aos demais. Nosso único Mestre é Jesus, todos os outros devem ser seus discípulos e deixar-se guiar por Ele.
Na Exortação Apostólica sobre o chamado à santidade, o papa Francisco identifica as pessoas que se consideram mais conhecedoras de Deus que os outros como inimigas da santidade. Elas estão presentes em alguns grupos que se consideram católicos, agindo como se possuíssem o pleno conhecimento da doutrina. Essas pessoas atacam e perseguem quem pensa diferente, acreditando que alcançam a salvação pelo conhecimento e ignorando o Cristo encarnado na realidade dos pobres e sofredores. O papa observa que “só de forma muito pobre chegamos a compreender a verdade que recebemos do Senhor. E, ainda com maior dificuldade, conseguimos expressá-la. Por isso, não podemos pretender que o nosso modo de entendê-la nos autorize a exercer controle rigoroso sobre a vida dos outros” (GE n. 43). Lembra ainda que a santidade não é fruto do conhecimento teórico da doutrina, mas de uma vida comprometida com os valores do Reino de Deus, anunciados e vividos por Jesus.
A segunda comparação usada por Jesus, entre a trave no próprio olho e o cisco no olho do irmão (vv. 41-42), mostra a incoerência de quem pretende julgar os outros, mas carrega os mesmos pecados ou até mais graves. Essa atitude lembra a do fariseu que se justificava no templo diante do publicano (cf. Lc 18,9-14). Antes de corrigir o irmão, é necessário fazer uma autocrítica lúcida para agir com misericórdia e ajudar na correção fraterna do irmão que errou. O papa Francisco nos ensina que a paciência de Deus sabe esperar até a última hora. Deus não exige perfeição, mas generosidade do coração (cf. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-02/papa-francisco-apresentacao-do-senhor-dia-vida-consagrada.html – consultado dia 14/02/2025). O papa acha que as pessoas demasiadamente rigorosas com os erros alheios, muitas vezes escondem algo que não aceitam em si mesmas.
O cardeal português José Tolentino, em seu livro “A mística do instante”, dedica um capítulo ao olhar. Ele nos convida a abrir as janelas para a vastidão, a olhar além do chão. Lembra que o pecado original entrou na história com a falsa promessa de ver como Deus (cf. Gn 3,1-13). Conforme o cardeal Tolentino, “o mal é o sequestro do olhar, é uma inversão de sentido do ver, é um olhar que foge, é uma renúncia a olhar as coisas na sua inteireza”. Ele questiona: “O que é que vemos quando vemos? ” (p. 129). Para ele, o que nos converte verdadeiramente é aceitar a trave, a imperfeição que nos condiciona. O que poderá nos mudar é a aceitação de que o problema pode ser nosso e não do outro (p. 138). Somente quando retirarmos a trave do nosso próprio olho poderemos ver com clareza e crer de verdade. “A fé é uma grande escola do olhar” (p. 140).
A terceira comparação usada por Jesus, entre a árvore e os seus frutos (vv. 43-44), ensina que o verdadeiro discípulo é reconhecido pelas obras que realiza. Não bastam as palavras para agradar a Deus e comprovar a fé (cf. vv. 46-49); não é suficiente vestir-se de cristão, faz-se necessário escutar a Palavra e praticá-la. O que falam os discípulos de Jesus, deve estar em sintonia com o que fazem. No coração deles devem habitar valores, pois “a boca fala do que o coração está cheio” (v. 45). Eles não devem ser dissimulados, falsos.
Não é fácil viver os valores do Reino! Testemunhar a fé que professamos exige a humildade para reconhecer os próprios erros e coragem para agir com integridade. O olhar limpo e verdadeiro pertence ao Mestre Jesus: Ele ensina o que vive. A palavra que sai da sua boca brota do seu coração amoroso, cheio de ternura e compaixão. É sempre uma palavra de vida. Ele é a própria palavra encarnada.
+ Dom Jeová Elias
Bispo Diocesano de Goiás